“Super-Homem” – A delicada força da mulher em Gilberto Gil



Em 1979, Gilberto Gil lançou a canção “Super-Homem – A canção”, uma das mais sensíveis e revolucionárias de sua carreira. Não se trata de uma ode ao herói de capa e poderes mitológicos, mas de uma reflexão profunda sobre masculinidade, sensibilidade e a força histórica da mulher. No cerne da composição, há uma desconstrução do arquétipo do homem invulnerável, e em seu lugar emerge a consciência de que a verdadeira potência humana está na integração da sensibilidade — muitas vezes atribuída culturalmente ao feminino.


1. A mensagem central: a ilusão do masculino como completude

A canção inicia-se com uma confissão:

"Um dia / Vivi a ilusão de que ser homem bastaria"

Nessa primeira linha, já somos levados ao núcleo da crítica: a crença socialmente construída de que a masculinidade, por si só, é suficiente — poderosa, completa, autônoma. O eu lírico admite ter vivido essa ilusão, reforçando que trata-se de um engano coletivo e interiorizado. Na sequência, completa:

"Que o mundo masculino tudo me daria / Do que eu quisesse ter"

Aqui, o mundo masculino aparece como promessa de posse, de controle, de domínio. A masculinidade como privilégio estruturante. Mas a quebra desse paradigma vem abrupta e reveladora:

"Que nada"

Essa interjeição ressoa como uma queda simbólica: o herói se depara com a falência do mito. O que antes era certeza torna-se vazio. E o que emerge como verdade? A porção mulher — aquela que estava recalcada, escondida, sufocada.

"Minha porção mulher que até então se resguardara / É a porção melhor que trago em mim agora"

É a sensibilidade, a intuição, a delicadeza, a capacidade de amar e compreender — atributos historicamente associados ao feminino — que libertam o sujeito. E mais que isso: é o feminino que lhe permite viver.


2. A primavera da consciência

Gil avança com um desejo:

"Quem dera / Pudesse todo homem compreender, ó mãe, quem dera"

Esse trecho evoca a figura materna como símbolo do feminino originário, da ancestralidade e da sabedoria. O apelo é comovente, quase uma prece: que todo homem possa reconhecer o valor do feminino dentro de si e fora de si.

"Ser o verão o apogeu da primavera / E só por ela ser"

Metáfora poderosa. A primavera representa o nascimento, a renovação, o florescimento — e o verão seria seu clímax, sua realização. Mas nada disso se justifica sem o princípio feminino. O verão só é grandioso porque a primavera existiu. É uma metáfora da gestação, da criação do mundo, da gênese de tudo — e é à mulher que se deve esse ciclo vital.


3. O super-homem que vem da mulher

"Quem sabe / O super-homem venha nos restituir a glória"

Gil recorre ao arquétipo do herói mítico, mas não para reafirmá-lo como salvador viril. Ao contrário, este “super-homem” será aquele que compreende sua vulnerabilidade, que integra sua porção mulher, que se desfaz do mito da força bruta. Ele virá para nos devolver uma glória esquecida — a glória da sensibilidade, da igualdade, da justiça.

"Mudando como um Deus o curso da história / Por causa da mulher"

E aqui está a virada: a transformação histórica, a redenção da humanidade, virá “por causa da mulher”. Não como musa, nem como suporte — mas como sujeito ativo, inspirador e condutor de mudanças.


4. A questão de gênero e a desconstrução da virilidade tóxica

Gilberto Gil, com rara sensibilidade, propõe uma crítica à masculinidade hegemônica que se constrói sobre o silêncio das emoções, a negação da fragilidade e a repressão da ternura. Sua canção não apenas propõe a escuta do feminino — como também indica que é a única saída possível para a crise do homem.

Ele antecipa, em forma poética, uma série de discussões que hoje se tornaram centrais nos debates sobre gênero: a masculinidade tóxica, a paternidade afetiva, o lugar do homem numa sociedade em que as mulheres se levantam com força e exigem, com razão, espaço, respeito e reparação.

O eu lírico reconhece que a “porção mulher” é o que o faz viver. É um reconhecimento de que a sensibilidade, historicamente atribuída ao feminino, não é fraqueza — é potência humana.


5. A mulher como gênese e agente da transformação histórica

Ao afirmar que o super-homem virá “por causa da mulher”, Gil não apenas exalta a importância das mulheres, mas reconhece que elas são o motor das transformações sociais. A história da humanidade tem sido marcada por apagamentos sistemáticos das vozes femininas. Desde as filósofas esquecidas na Antiguidade, passando pelas científicas marginalizadas, pelas operárias exploradas, pelas mães silenciadas, até as líderes políticas desqualificadas — a mulher tem resistido.

Gil nos lembra que a verdadeira mudança virá não pela repetição do modelo masculino dominante, mas pela integração daquilo que o patriarcado rejeita: o feminino como potência criadora, política e amorosa.




Manifesto: Por causa da mulher

Por causa da mulher, o mundo segue.

Por causa da mulher, a espécie se perpetua.

Por causa da mulher, os afetos não se extinguem.

Por causa da mulher, a história não colapsa.

Foi por causa da mulher que Esparta teve resistência, que Roma teve sustento, que os quilombos tiveram raiz. Foi por causa da mulher que Canudos durou, que o cangaço sobreviveu, que os terreiros cantaram quando tudo em volta se calava.

É por causa da mulher que as escolas têm colo, que os hospitais têm cuidado, que os filhos sonham. É por causa da mulher que o chão se rega, que o lar se ergue, que a dor vira força e a fome, rebelião.

As mulheres foram legadas ao silêncio pela história escrita com penas de homens. Mas sua voz ecoou nos bordados, nos cantos de trabalho, nas cartas escondidas, nas cozinhas, nos partos, nos velórios, nas lutas.

Foram elas que amamentaram as revoluções, mesmo sem receber o nome nas placas.

Foram elas que marcharam de mãos dadas contra os tanques, mesmo sem ter farda.

Foram elas que denunciaram os abusos, sustentaram os lares, ensinaram os filhos, sem direitos, sem salário, sem aplauso.

Simone de Beauvoir, Carolina Maria de Jesus, Maria da Penha, Dandara, Nise da Silveira, Pagu, Leila Diniz, Marielle Franco... Nomes de mulheres que não apenas existiram — resistiram.

A cada mulher que ousou pensar, que ousou dizer “não”, que ousou amar fora do script, que ousou abortar um destino imposto, que ousou criar, rir, correr, ser... A cada uma delas, devemos não uma homenagem, mas uma reparação.

E que se saiba: a luta das mulheres não é contra os homens, mas contra um sistema que os ensinou a dominar. A emancipação do feminino não suprime o masculino — o liberta.

Gilberto Gil nos deu uma canção que é ponte. Que é oração. Que é convite: a todo homem, que escute sua porção mulher. A toda mulher, que reconheça sua história divina.

E que venha o super-homem —

não aquele de capa e músculos,

mas aquele que, ao tocar a mão de uma mulher,

não quer dominá-la.

Quer aprender com ela a mudar o curso da história.


● Clique no link e ouça a canção "Super-Homem":

https://youtu.be/oG-drSJ52x0?si=GMFz6W4ZVT035-_T


● A letra da canção:

Um dia

Vivi a ilusão de que ser homem bastaria

Que o mundo masculino tudo me daria

Do que eu quisesse ter

Que nada

Minha porção mulher que até então se resguardara

É a porção melhor que trago em mim agora

É que me faz viver

Quem dera

Pudesse todo homem compreender, ó mãe, quem dera

Ser o verão o apogeu da primavera

E só por ela ser

Quem sabe

O super-homem venha nos restituir a glória

Mudando como um Deus o curso da história

Por causa da mulher

Quem sabe

O super-homem venha nos restituir a glória

Mudando como um Deus o curso da história

Por causa da mulher


● Se este conteúdo lhe foi útil ou o fez refletir, considere apoiar espontaneamente este espaço de História e Memória. Cada contribuição ajuda no desenvolvimento do blog. Chave PIX: oogrodahistoria@gmail.com

Muito obrigado, com apreço.

Comentários

Postagens mais visitadas