Série crônica: Cenas cariocas, o Rio como ele era! O pão doce da modernidade

Não é raro que, em tardes de lassidão, eu me veja a conversar com fotografias. Sim, leitor, com fotografias. Essas senhoras silenciosas e vaidosas que, embora sem fala, dizem muito mais que muitos homens. E que mais dizem quando são do Rio antigo, essa cidade que já foi menina com trança, senhora com sombrinha e agora desfila, em certos trechos, como viúva de si mesma.

Este blog — que não pretende ser tratado acadêmico nem almanaque de curiosidades — oferece-lhe, com modéstia e alguma audácia, uma coleção de crônicas breves, todas inspiradas em retratos do outrora. São imagens, mas bem poderiam ser fantasmas. Há nelas uma ironia muda, um suspiro escondido, uma rua que já não é rua, mas memória.

Cada texto é um copo d’água do tempo, servido com duas pedras de sarcasmo e uma rodela de saudade. Há figuras conhecidas e outras anônimas, todas fixadas na eternidade de um instante que já passou. O que ofereço é apenas um olhar torto, talvez melancólico, talvez maroto, sobre aquilo que chamamos de “Rio Antigo” — e que, se olharmos bem, ainda nos espia pelas frestas da modernidade.

Leitor curioso, que tenhas olhos não apenas para o que foi, mas para o que permanece sob o disfarce do presente. Boa leitura!


O pão doce da modernidade

Corria o início da segunda década do século XX — essa que os moços elegantes tratam por anos vinte, como se o calendário tivesse recebido aulas de etiqueta — e a cidade do Rio de Janeiro agitava-se com novidades de dar vertigem a qualquer espírito tradicional. Vejam vocês, prezados leitores: no ano de 1923 inaugurou-se a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, a primeira emissora de radiodifusão deste vasto e sempre surpreendente país tropical. Fabuloso! Modernidade pura, dessas que entram pela porta sem sequer tirar o chapéu, anunciando que o futuro chegou e veio para ficar, mesmo que ninguém lhe tenha oferecido uma cadeira.

Pois bem. Enquanto a modernidade batia impaciente à porta da República e fazia discursos elétricos, este cronista — homem de hábitos gastamente respeitáveis — resolveu praticar um pequeno ato de rebeldia ao progresso. Preferi, em vez de ajustar minhas orelhas aos apitos do rádio, ajustá-las ao canto ancestral das minhas lembranças. E assim desci até a Rua Camerino, no centro pulsante da cidade, para visitar a prestigiada padaria Mar e Terra, templo de devoção pública e privada.

Lá, tomei lugar à mesa como quem ocupa uma trincheira contra o avanço das máquinas, e pedi o suculento pão doce, fartamente rachado, cuja cobertura cremosa parecia ter sido inventada para ensinar aos anjos o que é gula. Senhores, aquilo era quase uma aparição mística: brilhava, exalava perfume e, ao primeiro pedaço, fazia o sujeito esquecer o caminho de casa — o que, convenhamos, é sinal infalível de qualidade.

Para completar o ritual, ordenei uma média. Sim, uma média, esse líquido nacional que consola o operário, enternece o poeta e, não raro, salva o político de seus próprios discursos. Afinal, quem neste país consegue viver sem fazer média? Perdoem-me o trocadilho infame, mas estava ali ao alcance da xícara.

Enquanto devorava minha epopeia açucarada, considerei a Rádio Sociedade e julguei que, se a modernidade enfim chegara, poderia muito bem esperar um pouco. Antes de falar ao país por ondas invisíveis, que tivesse a cortesia de deixar este cronista acabar seu pão doce — o único aparelho realmente capaz de transmitir felicidade.
 

● Imagem: Augusto Malta. Rio de Janeiro, padaria Mar e Terra, Rua Camerino, Centro, 1923. Instituto Moreira Salles. 

● Clique no link abaixo e ouça a canção "Ondas curtas" na voz inconfundível do Orlando Silva. A música ilustra a crônica.

https://youtu.be/2U_2bn8kuSk?si=PpORMDEVSeK-wwJ9


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Muito obrigado, com apreço.


 

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