Série crônica: O Rio como ele era: O Arsenal, a francesa e outros naufrágios

 


Não é raro que, em tardes de lassidão, eu me veja a conversar com fotografias. Sim, leitor, com fotografias. Essas senhoras silenciosas e vaidosas que, embora sem fala, dizem muito mais que muitos homens. E que mais dizem quando são do Rio antigo, essa cidade que já foi menina com trança, senhora com sombrinha e agora desfila, em certos trechos, como viúva de si mesma.

Este blog — que não pretende ser tratado acadêmico nem almanaque de curiosidades — oferece-lhe, com modéstia e alguma audácia, uma coleção de crônicas breves, todas inspiradas em retratos do outrora. São imagens, mas bem poderiam ser fantasmas. Há nelas uma ironia muda, um suspiro escondido, uma rua que já não é rua, mas memória.

Cada texto é um copo d’água do tempo, servido com duas pedras de sarcasmo e uma rodela de saudade. Há figuras conhecidas e outras anônimas, todas fixadas na eternidade de um instante que já passou. O que ofereço é apenas um olhar torto, talvez melancólico, talvez maroto, sobre aquilo que chamamos de “Rio Antigo” — e que, se olharmos bem, ainda nos espia pelas frestas da modernidade.

Leitor curioso, que tenhas olhos não apenas para o que foi, mas para o que permanece sob o disfarce do presente. Boa leitura!



O Arsenal, a francesa e outros naufrágios morais

Deixei o Catete logo cedo — cedo até demais, diria eu, se considerarmos que o sol, preguiçoso como funcionário público no fim do expediente, ainda tateava o horizonte. Caminhei rumo ao Arsenal de Marinha, instalado na sempre intrigante Ilha das Cobras, onde o bramido metálico dos martelos parecia entoar uma ladainha patriótica de 1895, ano em que a República ainda engatinhava e tropeçava nos tapetes que herdara do Império.

A cerimônia comemorativa dos trinta anos da Batalha Naval do Riachuelo prometia ser edificante, como tudo que envolve bravura, pólvora e discursos que ninguém escuta. A grandiosa epopeia, imortalizada pelo pincel de Victor Meireles, ganhava ali seu tributo, ainda que alguns presentes só demonstrassem entusiasmo quando o buffet acenava ao longe. 

Fui a convite do amigo Comandante Paiva, herói da batalha, homem de peito largo, memória curta e infinitas histórias que se contradizem entre si com a elegância de um navio fazendo meia-volta.

Assisti, com a compostura possível, aos hinos, discursos e salamaleques, mas confesso que meus pensamentos navegavam noutra direção — rumo ao Hotel Pharoux, do outro lado da Baía de Guanabara. Ali, sim, estava o verdadeiro campo de batalha deste cronista: o encontro fogoso com a bela francesa mademoiselle Ana Rois.

O Pharoux, primeiro hotel de luxo do Brasil, nascera em 1838 das ambições de Louis Pharoux, um francês exilado que decidiu ensinar à capital imperial o significado de requinte: cozinha francesa, vinhos decentes e — pasmem — banho quente. Coisas tão revolucionárias que certamente despertaram mais alvoroço que a própria Proclamação da República. Tão célebre se tornou o estabelecimento que seu cais ganhou nome próprio: Cais Pharoux, ponto de embarque da elite e de desembarque de suas indiscrições.

E ali eu iria, com meu francês mais destrambelhado que a política nacional. Mas, convenhamos, a gramática nunca foi instrumento indispensável às grandes paixões. 

A mademoiselle, tão graciosa quanto indulgente, haveria de compreender que beijos e carícias conhecem idioma universal — e que este cronista, embora sem fluência em Paris, dominava com alguma perícia os dialetos da ternura.

Após suportar os discursos,  despedir-me do Comandante e dos canhões do Arsenal. Parti ansioso para meu verdadeiro desafio: enfrentar o charme parisiense armado apenas de meu entusiasmo carioca tropical. Uma batalha íntima, silenciosa e, suspeito, muito mais intensa daquela do Riachuelo, coisa que nem Meireles conseguiria pintar sem ruborizar. 

● Imagem: Marc Ferrez. Rio de Janeiro, Arsenal de Marinha na Ilha das Cobras e vista para o Cais e Hotel Pharoux, 1895. Instituto Moreira Salles

● Clique no link abaixo e ouça o chorinho "A dengosa" de Joaquim Callado. A música ilustra a crônica.



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