História do Jogo do Bicho
O jogo do bicho é uma prática cultural de jogatina que nasceu precisamente na cidade do Rio de Janeiro, então capital do Império do Brasil e se consolidou no imaginário popular, ao longo das décadas. Passou por transformações que o tornaram um elemento único da sociedade e se popularizou no país. Criado como uma atividade legal para financiar o zoológico de Vila Isabel, o jogo logo se expandiu para além de seus propósitos iniciais, transformando-se em uma das contravenções mais emblemáticas do Brasil. Este texto explora a trajetória do jogo desde sua origem até o surgimento dos bicheiros, destacando as contradições, a aceitação popular e seu impacto na cultura brasileira.
A Origem: Um Zoológico e uma Ideia Criativa
● Entrada do Jardim Zoológico, 1915 circa. Brasil, Rio de Janeiro, RJ, Rua Visconde de Santa Isabel; Vila Isabel / Instituto Moreira Salles. Autor não identificado.
O Barão de Drummond estabeleceu uma amizade com Dom Pedro II e adquiriu, por 120 contos de réis, as terras da Imperial Quinta do Macaco, localizada em um vale próximo ao Morro dos Macacos, pertencente à Princesa Isabel. Durante uma viagem a Paris, encantou-se com a arquitetura da cidade e decidiu promover a urbanização da área, chegando a construir um boulevard. Fundou o bairro de Vila Isabel em 3 de janeiro de 1872. Além disso, implantou um sistema de bondes que conectava Vila Isabel à Praça da Constituição, hoje conhecida como Praça Tiradentes. Em 1874, ocupou o cargo de presidente do Jockey Club.
Grande amante dos animais, Drummond obteve permissão para importá-los e decidiu criar um zoológico. Ao longo de 1887, jornais noticiaram a chegada de diversas espécies para o futuro zoológico, como um peixe elétrico vindo do Pará, uma gralha, uma onça-parda, capivaras, pacas, porquinhos-da-índia, cachorros de mata virgem, tartarugas, corvos, macacos, cágados da Amazônia e muitos outros.
Para viabilizar o projeto, foi formada uma sociedade anônima com o objetivo de criar e administrar o jardim zoológico, inspirado nos que existiam nas grandes capitais do mundo. A sociedade solicitou ao governo apoio para que delegados nas províncias enviassem exemplares da rica fauna brasileira.
O Jardim Zoológico de Vila Isabel abriu suas portas em 6 de janeiro de 1888, embora sua inauguração oficial tenha ocorrido em julho do mesmo ano. No dia da abertura, o zoológico recebeu a visita de “809 pessoas a pé e 15 a cavalo”. O sucesso foi tão grande que a Companhia Ferro Carril Vila Isabel precisou disponibilizar carros extras aos domingos para atender à demanda crescente.
Entre as principais atrações do zoológico estavam duas seriemas doadas por Rui Barbosa e uma lhama presenteada pela Princesa Isabel, além de elefantes, girafas, tigres e outras espécies. O espaço também contava com apresentações musicais de bandas. Os filhos da Princesa Isabel visitaram o zoológico acompanhados de seu tutor, Ramiz Galvão, consolidando o prestígio do empreendimento.
Com o advento da República, o Barão perdeu os subsídios garantidos pelo imperador. Para contiuar a viabilizar o empreendimento, em 3 de julho de 1892, João Batista Viana Drummond, o Barão de Drummond, idealizou o jogo do bicho como uma forma de atrair público para o zoológico que ele havia fundado em Vila Isabel, no Rio de Janeiro. Na entrada do parque, os visitantes podiam adquirir bilhetes associados a imagens de animais. Ao final do dia, um sorteio revelava o animal vencedor, e o portador do bilhete correspondente ganhava um prêmio. De acordo com o Jornal do Brasil publicado em 4 de julho de 1892:
A empresa do Jardim Zoológico realizou ontem uma magnífica festa para celebrar seu importante e já bem conhecido recinto, situado no pitoresco bairro de Vila Isabel. Em boas condições, dirigiram-se os convidados e representantes da imprensa àquele local, onde desfrutaram de um hotel que, além de estar em ótimas condições, é falado pelas suas 40 acomodações íntimas e áreas externas, sendo parte também de um lauto jantar, com mais de 100 talheres, presidido pelo distinto diretor da companhia, o Sr. Barão de Drummond.
O primeiro brinde foi levantado pelo Dr. Sérgio Ferreira ao Sr. Barão de Drummond, que, com toda gentileza e espírito, respondeu de forma elegante. Seguiram-se outros brindes, sendo o último pelo vice-presidente da república, que destacou a importância cultural e social daquele estabelecimento, que se tornou frequentado por muitos cidadãos de renome, honrando seus fundadores.
Uma das atrações mais significativas do zoológico é o prêmio diário que consiste no sorteio de um número entre os visitantes. O sorteio ocorre às 7 horas da manhã e o número sorteado é exposto ao público às 5 horas da tarde. Cada bilhete de entrada no zoológico contém um animal figurado; quem possui o bilhete com o animal sorteado recebe um prêmio de 20 réis. Ontem, realizou-se o sorteio, com o vencedor recebendo uma considerável soma de 460.500 réis.
A empresa também está em construção de um grande salão especial para concertos, bailes públicos e outros eventos culturais, consolidando ainda mais o Jardim Zoológico como um espaço de lazer e entretenimento diversificado para o público.
Às 10 horas, encerraram-se as atividades, com pessoas de alta distinção agradecendo e aplaudindo a hospitalidade do Sr. Barão de Drummond e seus esforços incansáveis para manter o local com dignidade. Foi uma festa esplêndida!
A ideia logo chamou atenção devido à sua simplicidade e ao apelo popular. A loteria rapidamente se tornou uma febre entre os cariocas, mas o sucesso do jogo trouxe consequências inesperadas. Em menos de três anos, o jogo saiu dos limites do zoológico e foi adotado por comerciantes e ambulantes nas ruas, transformando-se em um fenômeno urbano.
Proibição e Expansão
Apesar de seu sucesso inicial, o jogo do bicho foi declarado ilegal em 1895 por meio do Decreto nº 113, que proibiu sua prática com base nos artigos 369 e 370 do Código Penal de 1890. A justificativa incluía argumentos de "moralidade" e "bons costumes", alegando que a atividade incentivava o vício e a desordem. Curiosamente, outras formas de loteria, como as corridas de cavalo, permaneceram legais, evidenciando um tratamento desigual em relação a práticas populares.
Apesar da proibição, o jogo do bicho resistiu. Ele se espalhou pelas ruas do Rio de Janeiro, sendo praticado em botequins, quitandas e até mesmo em residências. A repressão policial era ineficaz, e as prisões raramente resultavam em condenações. Esse cenário abriu caminho para a criação de redes organizadas de contravenção. Diante da repressão, ironicamente assim informou a revista Fon-Fon de 30 de novembro de 1907:
O Jogo do Bicho
Tudo, em nossa rejuvenescida capital, rejuvenesce, renasce e progride. Era, pois, natural que, acompanhando o impulso progressivo geral, o jogo do bicho, essa útil instituição, fonte puríssima de tantas fortunas e esperança imaculada de tantos desventurados, também evoluísse, como de fato evoluiu.
Ontem, em uma palestra amável, um bicheiro gentil nos colocou a par dos progressos dessa patriótica indústria.
"O jogo do bicho", dizia ele, "deve os seus grandes avanços à atividade policial do Sr. Alfredo Pinto. Outrora, quando os chefes de polícia não eram nossos inimigos, o bicho era um jogo banal, sem importância, sem nobreza, vendido em tavernas. As nossas responsabilidades eram menores; não temendo a polícia, pagávamos quando achávamos conveniente. As nossas despesas eram maiores, pois às vezes contribuíamos para a manutenção de delegados, ou melhor, de alguns delegados. As surpresas, quando aconteciam, eram verdadeiras surpresas que terminavam em flagrantes odiosos."
E hoje?
"Hoje!" E o nobre bicheiro sorriu com deleite. "Hoje, o bicho é um jogo elegante. Não há taverneiro que se arrisque a bancá-lo. Vendemo-lo com galanteria, percorrendo as casas dos jogadores ou, então, em lindos balcões de lindos palacetes. Quando, porém, não dispomos de palacetes, vendemo-lo como antes, em toda parte.
O jogador, hoje, tem a certeza de que será pago se ganhar. Sabe que, perseguidos pela polícia, não lhes daremos motivos para apresentar queixas desastrosas. As nossas despesas são menores; não contribuímos mais para a manutenção de autoridades e temos maior segurança. Quando o Sr. Chefe de Polícia resolve nos combater, medita longos dias, pede relatórios, emite circulares e faz a imprensa, modestamente, proclamar suas providências. Nós, por nossa vez, tomamos as nossas. Vêm, depois, as operações de S. Exa. com sua polícia, que encontra nossas bancas sem vestígios de vício, prende três ou quatro desavisados e se retira cabisbaixa. E a próspera indústria, para felicidade da nação, continua a evoluir."
Agradeci ao meu precioso informante por essas valiosas informações e saí com a consoladora convicção de que tudo, nesta era de progresso, nesta próspera pátria, progride e prospera.
A Popularidade e o Imaginário Coletivo
O jogo do bicho não era apenas uma loteria. Ele rapidamente se entrelaçou ao cotidiano e à cultura popular brasileira. Cada um dos 25 animais da loteria foi associado a características simbólicas, como a esperteza do macaco ou a força do leão. Essa conexão se refletia nos sonhos e nas interpretações do dia a dia, com apostadores utilizando eventos cotidianos e visões noturnas para escolher seus palpites.
Jornais especializados surgiram para atender à demanda por interpretações e dicas, consolidando o vínculo do jogo com o imaginário popular. Expressões como "sonhar com cobra é sinal de dinheiro" e "o número do cavalo no dia de São Jorge" tornaram-se parte da cultura oral. No dia 8 de janeiro de 1910, a revista Fon-Fon publicou Notas de um observador: O Jogo do bicho, assinado por Gypsi, acerca das nuances para a população e autoridades públicas:
Há anos passados, o diretor do então Jardim Zoológico, provavelmente com o propósito de atrair mais público, teve a ideia de criar prêmios que fossem entregues aos visitantes que comprassem ingressos para o jardim.
Para isso, colocava-se, em frente ao portão de entrada, um quadro fechado, onde estava pintada a figura de um animal representando a fauna mundial. O visitante comprava o bilhete que trazia impresso o nome de um animal e, caso coincidisse com o que estivesse pintado dentro do quadro naquele dia, era premiado.
Certamente, o diretor não imaginava que, com essa iniciativa, implantaria na população um jogo que se enraizaria profundamente nos hábitos do povo, resistindo a todas as proibições e investidas, sempre triunfante, sempre devastador. O Zé-Povinho havia encontrado o seu passatempo predileto.
Era curioso ver, nos arredores do jardim, homens consultando atentamente listas secretas, escritas a lápis, enquanto outros liam concentrados anotações misteriosas.
Lembro-me do dia em que, pela primeira e única vez, fui ao Jardim Zoológico, movido pela curiosidade. Fui até o guichê para comprar meu ingresso. Encostado à parede, um homem ruivo, de óculos, consultava uma lista. Grossas gotas de suor escorriam-lhe pelo rosto enquanto ele, com o olhar fixo no papel, roía nervosamente as unhas.
De dentro do guichê, o funcionário me perguntou:
— Qual é o bicho?
— Cabra! — respondi ao acaso. Peguei o papel azul que me entregaram e guardei no bolso, quando, de repente, senti alguém segurar firmemente minha manga.
— Cabra? Esse é o seu palpite? — perguntou-me o homem dos óculos, ofegante, com os olhos miúdos fixos nos meus, ansioso, febril, como se minha resposta pudesse decidir o destino do mundo ou resolver algum grave problema social.
Confirmei que era meu palpite e me afastei discretamente, enquanto ele, retirando de um bolso uma velha nota de cinco mil réis — provavelmente a única que tinha —, gritava para o funcionário:
— Cinco cabras!
Pouco depois, houve um grande alvoroço no jardim. Era o momento aguardado por todos. Dirigimo-nos ao local e, quando o quadro foi aberto, lá estava, grotescamente pintado, o asqueroso jacaré, com a boca escancarada, como se zombasse da certeza do meu palpite.
Após algum tempo, o jogo foi proibido no zoológico, mas continuou existindo por meio da loteria, atrelado ao número final do prêmio principal. Foi então que surgiram os "cabulosos".
O "cabuloso" é uma figura peculiar. De tudo faz um palpite; em tudo vê um indício, uma pista a seguir na busca do grande objetivo: acertar o bicho. Os jornais passaram a adotar o sistema dos palpites indiretos, publicando, em suas seções de charadas, enigmas envolvendo números e nomes de animais.
O cabuloso estuda esses enigmas, reflete, deduz e, por fim, convence-se de que todas as pistas apontam para um único animal, o próximo premiado. Ele então reúne suas poucas economias e as entrega ao banqueiro do jogo, confiante no sucesso.
Os sonhos também desempenham papel importante, especialmente entre as mulheres. Logo pela manhã, as vizinhas trocam confidências sobre os sonhos da noite anterior. Um exemplo clássico seria a dona de casa que, após sonhar com uma cobra gigante ameaçando seu marido, decide apostar "cinco tostões na cobra" para honrar o presságio.
Curiosamente, o vendeiro local, que comercializa alimentos e produtos básicos, também costuma vender os palpites do bicho com a mesma naturalidade. É comum ver, na lista de compras de uma família, entre o arroz e a carne seca, pequenos valores anotados para apostas: "dez tostões no jacaré, dois vinténs no pavão".
Com o tempo, a criatividade popular gerou novos sistemas de apostas, como o "salteado" e o "reservado", cada qual com sua peculiaridade. Apesar das tentativas de regulamentação, o jogo continuou a prosperar, movido pelo entusiasmo e pela imaginação do povo.
Hoje, as extrações da loteria são eventos concorridos. Homens e crianças se aglomeram nas salas apertadas, aguardando ansiosamente o anúncio do número premiado. Quando o funcionário finalmente declara o resultado, os olhares se voltam para as rodas da máquina, que giram rapidamente até pararem, revelando o número vencedor. Alguns saem radiantes, enquanto a maioria deixa o local abatida, lamentando mais uma derrota.
E eu? Sim, também já fui tentado pelo jogo do bicho. Já murmurei contra a "ladroeira" das extrações, pois apostei no tigre e o prêmio foi para o avestruz. Como você, leitor, que, ao terminar esta leitura, pode pensar em silêncio:
— Também eu...
O Surgimento dos Bicheiros
Com a expansão do jogo e sua consolidação como contravenção, surgiram os bicheiros, figuras centrais no gerenciamento das apostas e do território. Entre os primeiros nomes notórios estava Natalino José do Nascimento, conhecido como Natal, que começou como apontador e ascendeu ao posto de banqueiro do bicho. Outro pioneiro foi Aniceto Moscoso, que, além de dominar bancas em Madureira, se tornou um benfeitor local, financiando obras sociais e fundando o estádio do Madureira Atlético Clube.
A atuação dos bicheiros não se limitava ao jogo. Eles se tornaram influentes nas comunidades, patrocinando eventos culturais, como escolas de samba, e oferecendo assistência social em áreas negligenciadas pelo Estado. Essa dupla imagem — contraventores e benfeitores — consolidou sua presença no cenário carioca.
O Controle e a Organização do Jogo
Até a década de 1940, o jogo do bicho era descentralizado, com regras e critérios de sorteio variados. Foi apenas na segunda metade do século XX que ele se tornou uma estrutura organizada. Grupos de bicheiros estabeleceram cúpulas para unificar critérios de sorteio, dividir territórios e criar sistemas de compensação financeira. Essa organização trouxe uma estabilidade ao jogo e fortaleceu suas redes de influência.
Relação com o Samba e o Futebol
Os bicheiros também desempenharam um papel significativo na promoção do samba e do futebol no Brasil. Escolas de samba como Portela, Beija-Flor e Mocidade Independente de Padre Miguel receberam apoio financeiro de banqueiros do jogo, que viam nas agremiações uma forma de fortalecer sua imagem junto à comunidade. Ao mesmo tempo, clubes de futebol em áreas suburbanas se beneficiaram do patrocínio, com estádios e equipes sendo financiados pelos lucros do bicho.
A Persistência do Jogo e Suas Contradições
Mesmo com repressões periódicas, o jogo do bicho continua presente no Brasil. Ele representa uma prática resiliente, sobrevivendo como uma alternativa acessível para a população de baixa renda. Além disso, ele é frequentemente percebido como uma forma de contestação às estruturas de poder, especialmente devido à sua conexão com o imaginário popular e com as tradições culturais.
No entanto, sua persistência também está associada a atividades ilícitas, incluindo lavagem de dinheiro e financiamento de outras contravenções. Essa dualidade — entre prática cultural e crime organizado — marca a complexidade do jogo do bicho e sua relação com a sociedade brasileira.
Conclusão
O jogo do bicho é muito mais do que uma loteria. Ele é um reflexo das contradições da sociedade brasileira, combinando ludicidade, resistência cultural e redes de poder. Desde sua criação pelo Barão de Drummond até a consolidação dos bicheiros, o jogo acompanhou as transformações do Brasil, mantendo-se relevante e enraizado no imaginário coletivo. Sua história é um testemunho da criatividade e da resiliência popular, bem como das tensões entre o formal e o informal, o legal e o ilícito.
Nota:
Recomendo a série "Vale o escrito: A guerra do jogo do bicho".
As fontes impressas da revista Fon-Fon e do Jornal do Brasil estão disponíveis na:
https://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/
Indicação de leituras:
● Maldito invento dum baronete: Uma breve história do jogo do bicho por Luiz Antonio Simas
● Ganhou, leva! O jogo do bicho no Rio de Janeiro (1890-1960) por Felipe Magalhães
Veja mais em:
https://youtu.be/G7-FrYDFWXQ?si=KnE789VL4xSfZE8j
parabéns! não conhecia.
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