Os Reis Taumaturgos do Vale do Silício: O Milagre Digital e a Dominação Tecnocrática

  

 Introdução

Nos tempos medievais, acreditava-se que certos reis eram dotados de poderes divinos, capazes de curar os enfermos com o simples toque de suas mãos. O historiador Marc Bloch, em Os Reis Taumaturgos, analisou essa prática como um mecanismo de legitimação do poder régio. A sociedade depositava sua fé nesses monarcas, garantindo-lhes uma autoridade quase incontestável. Hoje, a crença na autoridade mística dos reis pode ter se dissipado, mas uma nova classe de soberanos emergiu: os magnatas das Big Techs.  

Elon Musk, Mark Zuckerberg, Jeff Bezos e seus pares exercem um domínio sobre a sociedade que transcende a economia e a política. Assim como os reis taumaturgos do passado eram vistos como intermediários entre o divino e o humano, esses oligarcas são apresentados como visionários iluminados por uma inteligência excepcional. Suas empresas se tornaram templos modernos, suas palavras são dogmas e suas inovações são vistas como milagres tecnológicos que prometem um futuro melhor para a humanidade.  

Neste texto, exploraremos como os magnatas das Big Techs replicam as estratégias dos reis taumaturgos para consolidar seu poder e influência. Analisaremos como a tecnologia se tornou um novo dogma, moldando governos, economias e até mesmo o comportamento humano, e investigaremos se estamos realmente avançando ou apenas substituímos coroas por códigos-fonte.  

I. O Toque Mágico dos Reis e dos Códigos-Fonte 

Os reis taumaturgos não eram apenas governantes; eles eram figuras sagradas. Seu poder não se baseava apenas em exércitos ou impostos, mas na crença coletiva de que eram diferentes do resto da humanidade. O toque régio nas escrófulas era uma demonstração pública de sua divindade, e os súditos se agarravam à esperança de que a cura vinha do poder místico do monarca.  

Hoje, esse toque místico foi substituído por inovações tecnológicas. O bilionário da tecnologia não cura doenças físicas, mas promete resolver todos os problemas da humanidade com um novo aplicativo, uma nova inteligência artificial ou uma nova criptomoeda revolucionária. Musk sugere que colonizar Marte nos salvará do colapso ambiental; Zuckerberg promete um metaverso onde a realidade não será mais um problema; Bezos imagina um mundo onde robôs e drones farão tudo por nós. Assim como os súditos medievais olhavam para seus reis taumaturgos em busca de milagres, o público moderno olha para os titãs da tecnologia como salvadores.  

II. A Construção da Mística Digital

Os reis taumaturgos não apenas curavam, mas reforçavam sua autoridade por meio de rituais públicos. Em grandes cerimônias, tocavam os enfermos diante de multidões, garantindo que a crença em seu poder se espalhasse. Esse ritual servia para consolidar sua posição e garantir que ninguém questionasse sua autoridade.  

O Vale do Silício emprega uma estratégia semelhante. Os grandes eventos de tecnologia – como os lançamentos de produtos da Apple ou as conferências do Google – funcionam como verdadeiros rituais sagrados. Novos produtos são apresentados como milagres, e os consumidores reagem com reverência e entusiasmo. As palavras dos CEOs são recebidas como profecias, e seus anúncios moldam o comportamento global.  

Assim como os reis taumaturgos não podiam ser questionados sem risco de heresia, os magnatas da tecnologia são tratados como infalíveis. Qualquer crítica a eles é rebatida como resistência ao progresso. A crença na infalibilidade dos algoritmos e na genialidade de seus criadores se tornou um dogma moderno.  

III. O Poder Além da Política 

Os reis taumaturgos tinham um poder que transcendia a política. Eles não eram apenas governantes; eram figuras sagradas que não podiam ser desafiadas sem graves consequências. Hoje, os magnatas da tecnologia operam de forma semelhante. Embora não sejam oficialmente chefes de Estado, seu poder supera o de muitos líderes eleitos.  

Nos Estados Unidos, as Big Techs influenciam diretamente políticas públicas, financiando campanhas, ditando a regulamentação da internet e influenciando eleições. Seu controle sobre a informação é imenso: plataformas como Facebook, Twitter e Google decidem o que pode ou não ser dito, moldando debates públicos e políticas governamentais.  

Em um mundo onde a informação é o bem mais valioso, quem controla os algoritmos controla a sociedade. Os reis taumaturgos precisavam da crença de seu povo para manter sua posição; os oligarcas digitais precisam apenas de dados.  

IV. A Ilusão do Progresso e a Realidade da Dominação  

Os reis taumaturgos prometiam cura, mas suas habilidades eram ilusórias. A maioria das pessoas que recebia seu toque provavelmente não era curada, mas a crença na eficácia do ritual persistia porque oferecia esperança. Da mesma forma, os magnatas da tecnologia vendem promessas de um futuro utópico, mas a realidade é muitas vezes menos brilhante.  

O metaverso, anunciado como o próximo grande passo da humanidade, é, na prática, um ambiente virtual criado para prender usuários e extrair ainda mais dados. Os avanços em inteligência artificial, vendidos como uma revolução, muitas vezes resultam em maior vigilância e desemprego. A corrida pelo transumanismo e a busca pela imortalidade digital são, em grande parte, tentativas de um seleto grupo de bilionários para escapar das limitações humanas enquanto o restante da sociedade permanece preso às mesmas desigualdades.  

 V. Como Resgatar a Soberania Popular  

Se os reis taumaturgos caíram com o avanço do pensamento crítico e da ciência, talvez a única maneira de desafiar o império das Big Techs seja um despertar coletivo sobre seu verdadeiro papel na sociedade. A regulamentação dessas empresas é essencial para limitar seu poder. A descentralização da internet e o fortalecimento da privacidade digital são passos fundamentais para recuperar o controle da informação.  

Os magnatas da tecnologia não são deuses. Eles não têm um toque mágico que pode curar todos os problemas da humanidade. São empresários que buscam lucro e poder, e sua dominação deve ser questionada tanto quanto qualquer monarquia absolutista do passado.  

VI. Mas até que ponto essa narrativa se sustenta?

Se os reis taumaturgos legitimavam sua posição através de rituais públicos que reforçavam a crença coletiva em seu poder divino, os magnatas das Big Techs utilizam estratégias semelhantes: eventos grandiosos de lançamento de produtos, entrevistas cuidadosamente coreografadas e, é claro, uma presença constante na imprensa e nas redes sociais. Seus "milagres" não são mais curas físicas, mas sim a ilusão de que suas inovações tecnológicas nos salvarão da ignorância, da ineficiência e até mesmo da mortalidade.

Assim como a crença nos reis taumaturgos servia para fortalecer o poder monárquico e afastar questionamentos sobre sua legitimidade, a mitificação dos oligarcas da tecnologia cumpre um papel semelhante. Ao se apresentarem como seres superiores, eles mascaram a crescente influência que exercem sobre governos e instituições democráticas.

Nos Estados Unidos, por exemplo, as grandes empresas de tecnologia influenciam diretamente a formulação de leis e políticas, financiando campanhas, definindo discursos e moldando o debate público. As promessas de um futuro digital utópico não são muito diferentes das promessas de salvação que os reis taumaturgos faziam a seus súbditos. Mas, em ambos os casos, quem realmente se beneficia não são os seguidores, mas sim os próprios detentores do poder.

A relação entre as Big Techs e os governos modernos lembra cada vez mais um sistema feudal, no qual os gigantes da tecnologia funcionam como senhores feudais, exercendo controle sobre vastos territórios digitais e exigindo lealdade inquestionável de seus usuários. Enquanto isso, os governos, que deveriam proteger a soberania popular, tornam-se vassalos dessas corporações, hesitando em impor regulações por medo de retaliações econômicas ou políticas.

Não é coincidência que essas empresas invistam cada vez mais em setores como a saúde e a educação, promovendo soluções "milagrosas" como a imortalidade biotecnológica ou a aprendizagem personalizada por inteligência artificial. Assim como os reis taumaturgos manipulavam as esperanças de cura física, os oligarcas das Big Techs exploram nossos medos e desejos, prometendo um futuro onde o sofrimento será erradicado pelo poder da tecnologia. Mas quem controla esse futuro? Quem decide quem terá acesso a esses "milagres" digitais?

A pergunta que permanece é: até quando continuaremos a acreditar nesses "milagres" modernos? Se na Idade Média as pessoas aceitaram por séculos a ideia de que seus reis eram curadores divinos, quantas gerações ainda serão dominadas pela crença de que os oligarcas da tecnologia são os salvadores da humanidade? Talvez seja hora de questionar os dogmas dessa nova aristocracia digital antes que nos vejamos irremediavelmente subjugados a ela.

Se os reis taumaturgos caíram com o advento do pensamento racional e da ciência, talvez o futuro da democracia dependa de nossa capacidade de desmistificar os senhores da tecnologia e restabelecer o equilíbrio entre inovação e soberania popular. Caso contrário, estaremos apenas trocando uma coroa de ouro por um logotipo reluzente no topo de um império digital.

Conclusão: A Taumaturgia do Século XXI

A analogia entre os reis taumaturgos medievais e os oligarcas das big techs modernos é, em muitos aspectos, perturbadoramente precisa. Ambos usam uma suposta superioridade – seja ela divina ou intelectual – para justificar seu poder e dominação. Ambos dependem de uma combinação de crença popular, propaganda e controle social para manter seu status. E ambos, em última análise, servem para perpetuar uma ordem social desigual, onde o poder e a riqueza estão concentrados nas mãos de poucos.

No entanto, há uma diferença crucial entre os reis medievais e os oligarcas modernos. Enquanto os reis dependiam da fé religiosa para legitimar seu poder, os oligarcas dependem da fé na tecnologia e no progresso. Essa nova forma de taumaturgia é talvez ainda mais poderosa, pois é menos visível e mais insidiosa. Ela nos faz acreditar que a concentração de poder e riqueza nas mãos de poucos é necessária para o progresso da humanidade, quando, na verdade, é justamente o oposto.

Portanto, é hora de desmistificar a taumaturgia moderna. Precisamos questionar a suposta superioridade intelectual dos oligarcas das big techs e reconhecer que seu poder e dominação não são justificados por nenhum tipo de genialidade divina, mas sim por uma combinação de circunstâncias privilegiadas, exploração e controle social. Só então poderemos começar a construir uma sociedade verdadeiramente justa e igualitária, onde o poder e a riqueza sejam distribuídos de forma mais equitativa, e onde a tecnologia seja usada para o bem de todos, e não apenas para o benefício de uma elite auto-proclamada.

A história se repete, mas com novos protagonistas. O que antes era justificado por um direito divino agora se sustenta na ilusão de uma superioridade intelectual e tecnológica. Os reis taumaturgos do passado e os oligarcas do Vale do Silício compartilham a mesma ambição: o controle absoluto sobre a sociedade por meio da manipulação da fé – seja ela religiosa ou digital.  

Se quisermos evitar que a humanidade continue presa a esse ciclo de adoração cega, devemos resgatar o ceticismo e o pensamento crítico. Não precisamos de novos reis taumaturgos; precisamos de uma sociedade consciente de seu poder coletivo.  

A tecnologia pode ser uma ferramenta de libertação, mas, quando concentrada nas mãos de poucos, torna-se um instrumento de dominação. A escolha entre esses dois caminhos está em nossas mãos. 


Indicação de leituras:

● Incerteza, um Ensaio: Como pensamos a ideia que nos desorienta por Eugênio Bucci

● Big Tech: A ascensão dos dados e a morte da política por Evgeny Morozov

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