Série crônicas: Cenas cariocas, o Rio como ele era! A capital que se foi, a vedete que ficou


Não é raro que, em tardes de lassidão, eu me veja a conversar com fotografias. Sim, leitor, com fotografias. Essas senhoras silenciosas e vaidosas que, embora sem fala, dizem muito mais que muitos homens. E que mais dizem quando são do Rio antigo, essa cidade que já foi menina com trança, senhora com sombrinha e agora desfila, em certos trechos, como viúva de si mesma.

Este blog — que não pretende ser tratado acadêmico nem almanaque de curiosidades — oferece-lhe, com modéstia e alguma audácia, uma coleção de crônicas breves, todas inspiradas em retratos do outrora. São imagens, mas bem poderiam ser fantasmas. Há nelas uma ironia muda, um suspiro escondido, uma rua que já não é rua, mas memória.

Cada texto é um copo d’água do tempo, servido com duas pedras de sarcasmo e uma rodela de saudade. Há figuras conhecidas e outras anônimas, todas fixadas na eternidade de um instante que já passou. O que ofereço é apenas um olhar torto, talvez melancólico, talvez maroto, sobre aquilo que chamamos de “Rio Antigo” — e que, se olharmos bem, ainda nos espia pelas frestas da modernidade.

Leitor curioso, que tenhas olhos não apenas para o que foi, mas para o que permanece sob o disfarce do presente. Boa leitura!

 

A capital que se foi, a vedete que ficou

Era 1960 e o Rio de Janeiro vivia sua bossa nova particular, um compasso de violão do João Gilberto que se misturava à maresia. O presidente Juscelino Kubitschek, que também era bossa nova, homem de sorriso fácil e promessa difícil, conduzia o país com o lema de fazer cinquenta anos em cinco — e, de quebra, tirar a capital do seu leito natural, como quem retira um quadro da parede para pendurá-lo no quarto vizinho.

Brasília surgiu no cerrado como uma epifania de concreto e curvas sensuais de Oscar Niemeyer, todas guardadas sob o olhar meticuloso de Lúcio Costa, que fiscalizava a prancheta como um bedel de colégio fiscaliza a algazarra. A novidade era grandiosa, mas, cá entre nós, tão sem praia quanto um domingo sem feijoada.

Ao Rio restava a perda do título de capital, mas não da majestade. São Sebastião, o santo padroeiro, talvez tenha torcido o nariz para tal desfeita, mas a urbe manteve o rebolado de vedete que, mesmo sem coroa, reina pela graça natural. Nenhum arquiteto, por mais genial, poderia desenhar a curva da Praia de Copacabana ou a insolência rochosa do Pão de Açúcar.

Nessa manhã, deixei-me levar por esse cenário. Parei meu Chevrolet Stylemaster — automóvel que fazia mais barulho de status que de motor — na Avenida Beira Mar, de frente para o obelisco da Rio Branco. Mirei o Pão de Açúcar, que me fitava com aquela altivez de monumento que sabe o próprio valor, e prometi-lhe amor eterno, como quem promete fidelidade a uma musa ingrata.

Naquele instante, senti-me Vinicius de Moraes, com a alma entre o copo e o verso. Declarei, com a solenidade de um apaixonado e a ironia de quem sabe ser correspondido:

Quando a luz dos olhos meus

E a luz dos olhos teus resolvem se encontrar

Ai, que bom que isso é, meu Deus

Que frio que me dá o encontro desse olhar...

O Rio não respondeu, mas piscou-me em reflexos dourados sobre a Baía. E entendi que Brasília poderia ter ministérios, mas o Rio, ah, o Rio tinha a eternidade de um pôr do sol em Ipanema.

E eternidade, meus caros, não se transfere por decreto ou pelo concreto.


● Imagem: Medeiros, José. Avenida Beira Mar, Centro, Rio de Janeiro, 1960. Instituto Moreira Salles

● Clique no link abaixo e ouça a canção "Wave" do Tom Jobim na voz inconfundível de João Gilberto. A música ilustra essa crônica:

https://youtu.be/2RCnbOzCj1I?si=U9b60K-ETDi0Mn6w


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Muito obrigado, com apreço.




 

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